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Giovani José da Silva

HISTÓRIAS DE ADMIRAR: LUGAR DE CALA (A BOCA)

         “Cala a boca já morreu, quem manda aqui sou eu”: a frase ouvida tantas vezes quando menino me veio à lembrança especialmente nos últimos dias, em que chegamos à triste e terrível marca de mais de 100.000 vidas ceifadas pela Covid-19 no Brasil. Em meio ao caos, ouvimos à exaustão vozes autoritárias vindas de distintos lugares, apregoando suas verdades e convencendo suas respectivas claques de que estão absolutamente certas (isso me faz lembrar um antigo programa televisivo de perguntas e respostas... É, estou nostálgico!) a respeito deste ou daquele tratamento, desta ou daquela ideia sobre qualquer coisa. Lugares de fala, lugares de cala, enfim, são muitos os lugares, afinal... Dias atrás li uma expressão em um texto do professor Wilson Gomes (Folha de São Paulo, 11/08/2020), da Bahia, em que se referia ao “mercado epistêmico” e, então, percebi que há tempos desejava escrever sobre isso, expressando um ponto de vista que remete não somente às minhas vivências, mas especialmente aos estudos que empreendi ao longo dos últimos 30 anos sobre populações indígenas, suas histórias e culturas dolorosamente entrelaçadas às nossas. E o que vem a ser esse tal “mercado”? De acordo com Gomes, pode-se traduzi-lo como “[...] luta por acúmulo de autoridade em termos de raça e de etnia. Um capital que depois vai render no mercado de palestras, livros, produtos culturais, posições acadêmicas, convites internacionais, empregos na mídia, cargos públicos e autoridade tribal”. Bingo! Não pretendo esmiuçar o funcionamento desse mercado, mas quero lhes contar algumas coisinhas, caros leitores. No “mercado epistêmico” as flutuações são grandes e as moedas de troca sofrem alterações bruscas, visando a acomodação de quem chega e o cancelamento/ a retratação/ o “expurgo” de quem cai em desgraça por um ou outro motivo. Não se preocupem, pois as regras do “mercado” já estão postas (embora nem sempre sejam respeitadas): você não vale tanto pelo que produz (isso conta, também, é claro!), mas há muito mais variáveis em jogo! Onde você estudou, com quem você estudou, quantas pastas/ bolsas/ pacotes carregou para seus diletos orientadores/ supervisores, a sua rede de relações (que podem se tornar familiares, inclusive), os seus contatos dentro e fora da academia: tudo isso te posiciona (ou te arremessa para fora do tabuleiro), te classifica e diz qual o teu lugar (de fala?) nesse “mercado”. Não, caros leitores, não estou com inveja, raiva ou ressentimento de quem se deixou seduzir pela pompa, pelos artifícios, brilhos e cristais (ops, preciso tomar cuidado com os usos desses termos...) dos convescotes acadêmicos, das palestras super bem pagas (algumas delas para que a diva/ o “muso” despejem uma carrada de palavrões/ estereótipos sobre a plateia, que vai ao delírio!), dos livros que vendem muito bem (obrigado!) para dizer às pessoas que não é preciso transformar o mundo (desigual, excludente, racista etc.) que está a sua volta: transforme-se e... voilà! Eu teria (muita) vergonha de pedir um dinheiro alto para uma secretaria de educação qualquer para palestrar a professores cujos salários são vergonhosos e que trabalham em condições precaríssimas. Entretanto, o “mercado epistêmico” sabe como fisgar seus consumidores, cooptando este ou aquele que fará o papel de “se eu consegui chegar ao topo, qualquer um consegue com o próprio esforço”. O que não se vê (mas se sente doído) é que nos bastidores desse “mercado” as negociatas/ negociações, as manipulações e as “puxadas de tapete” são uma constante e fazem parte da ciranda em movimento. “Cicrano não deve ser convidado para o evento, pois é tão polêmico, tão ‘chão de escola’!”; “Beltrana não tem o direito de fala, pois ela não sabe o que é ser... (complete a frase à vontade); “Fulano estudou comigo e está precisando de uma força, embora seus estudos não encaixem exatamente no tema abordado, mas ele foi orientado por... (mais uma vez, fique à vontade em completar a frase) e é tão simpático". E por aí vai... Assim, vão se constituindo os petits comités, as guildas, os círculos restritos para poucos, os que se tornam os “chics e famosos” do meio acadêmico. A eles, caso se comportem direitinho, caberão as melhores passagens aéreas e reservas em hotéis (além de boa alimentação, é claro) nos eventos mais prestigiosos. Os lançamentos de seus livros (não importa que sejam as mesmas lengas-lengas de sempre) serão concorridos e, se derem sorte, serão chamados para entrevistas em rádio, televisão e Internet... Enfim, um “mundinho” almejado por muitos e alcançado por poucos (quase nenhum “da Silva”). Quanto a mim, que já desejei fazer parte desse “circo”, hoje prefiro continuar o árduo trabalho de pesquisas, das salas de aula da graduação (tão desprezada) e pós-graduação, no “chão da aldeia” e no “chão da escola”. Isso me permitiu, por exemplo, fazer Televisão e participar de uma certa BNCC – História tão enxovalhada pelos (ím)pares. Palavra de quem ousa viver às margens, nas beiras, bordas e fronteiras do “mercado epistêmico”, um verdadeiro círculo de fogo, uma intensa fogueira de vaidades...

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