Giovani José da Silva
Aproveito o fato de ter sonhado nesta semana com alguém que não vejo há tempos – e que já revelou não querer mais me ver ou falar comigo – para apresentar aos caros leitores um pouco do que aprendi sobre sonhos, tal como me revelaram os anciãos e as anciãs indígenas com quem convivi ao longo dos últimos 29 anos! Escrevo sobre isso com muita tranquilidade, pois desde que decidi me embrenhar nas matas, longe do barulho e das luzes das cidades, e a conviver com indígenas (Kadiwéu, Terena, Kinikinau, Kamba, Guató, Bororo, Atikum e tantos outros povos) sempre me deparei com o sagrado, o imaterial indissociável da vida material e cotidiana. Portanto, quando me perguntam como concilio o lado cientista – de historiador, professor e aprendiz de antropólogo – com o lado crente (daquele que crê e não necessariamente do que possui uma religião/ religiosidade específica), a resposta me vem fácil, na ponta da língua: não posso/ consigo separar os “lados”, pois ambos são como faces de uma mesma moeda... Pois bem, aprendi com pajés e “antigos” sábios que temos vários tipos de sonhos e que eles servem para o aprendizado de quem foi escolhido para ser xamã/ pajé/ curandeiro. Inclusive, foi em um sonho, há muito tempo, que me foi revelado que este seria, também, o meu caminhar ao longo da vida, como predisse meu “vô Somário”! Algum tempo atrás tive um sonho de “visitação”: tia Irene, uma tia-avó materna querida, visitou-me e me contou que meu padrinho e tio-avô, Celso, estava bem. Além disso, avisou-me que em breve meu pai me visitaria em sonhos, o que, de fato, ocorreu... Dessa forma, o sonho de “visitação” com tia Irene, “la Negra”, também pode ser considerado um sonho de “anunciação”, quando alguma notícia, alegre ou triste, nos é comunicada. Geralmente, tenho sonhos de “anunciação” quando recebo mensagens da terra dos sonhos (ou aldeia da memória), em que sou informado da partida ou da chegada de algum membro da família ou amigo! Outro exemplo de sonho de “visitação” que tive está relacionado à procura pelos restos mortais do explorador italiano Guido Boggiani (1861-1901). Explico: Boggiani esteve entre os Kadiwéu em duas ocasiões, em fins do século XIX: 1892 e 1897. Sobre os Caduveos (era assim que os chamava) deixou preciosos diários, já publicados em Português (Itatiaia, 1975) . Quando entrei em contato com os Ejiwajegi (autodenominação Kadiwéu), pela primeira vez, as leituras das obras de Boggiani, dentre outros, foram valiosas para o meu entrosamento inicial entre eles. Sem contar que meu nome, italiano (significa “juventude”), levava os mais “antigos” a imaginarem que eu tivesse algum parentesco com o explorador do século XIX. Boggiani morreu no início do século XX pelas mãos de um indígena Chamacoco, Luciano (versão oficial). Os Tomaraho (também conhecidos como “Chamacoco bravo”), na época, eram inimigos dos Kadiwéu. Quem me contou essa história foi a “memé” Durila, que me apareceu em sonho e pediu que eu “descobrisse” onde estava enterrado o “meu parente”. E não é que os restos mortais de Boggiani foram encontrados, em uma capela no Cemitério dos Italianos (Assunção, Paraguai), ao lado dos de Felix Gavilan, acompanhante naquela que seria sua última expedição pelo Chaco paraguaio/ Pantanal brasileiro, em 1901? Finalmente (embora não seja o último tipo), há os sonhos de “evitação”, em que sou alertado sobre perigos a serem enfrentados e obstáculos a serem evitados... Os sonhos fazem parte (ou deveriam fazer) do aprendizado de qualquer pessoa, especialmente daqueles que se preparam, como eu, para ajudar a manter o céu sobre nossas cabeças, para que não desabe sobre o mundo o caos e o devaneio. Também aprendi com velhos e velhas indígenas que vivemos em um mundo doente e que palavras que saem de nossas bocas, além de práticas benfazejas, ajudam a curar as gentes, os bichos, as plantas que vivem no planeta. O xamanismo indígena se constitui, portanto, em um sistema eficaz de palavras benditas (bem ditas), que curam, transmitidas inclusive em sonhos. Isso é, também, uma forma de fazer política, embora muitos pensem que se trate apenas de religião, de alienação e de fuga da realidade! A realidade para muitos povos indígenas não é feita apenas do que se vê/ cheira/ ouve/ toca, mas, também, do invisível, do etéreo e (por que não?) dos sonhos...
Voltar ao topo