O Coletivo “Aqui Mulher” emitiu nota com duras críticas à Lei de Enfrentamento ao Feminicídio em Aquidauana.
A principal crítica, segundo nota, é a não consulta às mulheres do município para a elaboração conjunta da lei.
“A presidência do Legislativo simplesmente agrediu a sociedade, excluindo-a da elaboração do projeto, ignorando a existência das mulheres aquidauanenses e das suas opiniões, negando-se inclusive a realizar debates e audiência publica, condição regimentalmente prevista para legitimar e dar transparência aos atos do Poder Legislativo”, destaca trecho da nota.
Confira na íntegra:
O Coletivo “Aqui Mulher” nasceu com o propósito de defesa, enfrentamento, acolhimento e luta pelos direitos da Mulher. Pautamo-nos pela busca de mecanismos institucionais e políticas públicas para prevenir e enfrentar todas as formas de discriminação e violências, sejam físicas, sexuais, psicológicas, morais, econômicas ou simbólicas contra mulheres e crianças.
Os constantes atos de violência contra a mulher, além do vigoroso repúdio popular e eventuais procedimentos punitivos e de repressão por parte das instituições pertinentes, precisam ser prevenidos e combatidos por meio de mecanismos jurídico-institucionais e de práticas preventivas e educativas, de orientação e de atenção física e social para garantir a elas efetiva segurança e as coberturas correspondentes, como o acolhimento, a assistência psicossocial e o direito de participar de debates e decisões que afetam sua vida, sua comunidade e seu mundo.
A Câmara de Vereadores de Aquidauana, ambiente legitimado pela democracia e pelo Estado de Direito, realizou um processo interno para propor e instituir o Programa Municipal de Enfrentamento ao Feminicídio. Conduzida pelo presidente do Legislativo Municipal, a matéria foi embrulhada num "pacote" e empurrada goela abaixo da sociedade, sem ouvir a população e ignorando as opiniões das interessadas diretas: as MULHERES.
O Coletivo AquiMulher, formado por mulheres dos mais diversos segmentos da população, vem defendendo não-somente uma medida específica, como essa proposta de combate ao feminicídio, e sim uma política pública municipal ampla, democraticamente debatida com a sociedade, capaz de fazer a leitura fiel das realidades locais, suas peculiaridades étnicas, sócio-econômicas, culturais e religiosas. Isto, para garantir legitimidade e consistência política e social à iniciativa, impedindo que o programa se limite ao protocolo do modismo político ou ao bel-interesse de quem se preocupe apenas em angariar a simpatia do público e do voto feminino.
Infelizmente, a elaboração do programa conduzido pelo presidente da Câmara - e com o respaldo dos demais vereadores, presume-se que por boa-fé -, resultou na desconstrução institucional e política dos verdadeiros e grandiosos objetivos de afirmação humanista que deveriam mover aquela iniciativa. A presidência do Legislativo simplesmente agrediu a sociedade, excluindo-a da elaboração do projeto, ignorando a existência das mulheres aquidauanenses e das suas opiniões, negando-se inclusive a realizar debates e audiência publica, condição regimentalmente prevista para legitimar e dar transparência aos atos do Poder Legislativo.
Reivindicamos à Câmara, com o respeito devido à instituição guardiã dos interesses legítimos da população, que adote as providências cabíveis para que o citado programa seja revisto, sem prejuízo da iniciativa regimental e constitucional que ampara o poder na execução desse processo. E que um renovado e arejado projeto entre em pauta, com a mais ampla das participações populares, reunindo e ouvindo homens e mulheres de todas as regiões, da cidade, do campo, das fazendas, das aldeias, das terras quilombolas, dos distritos, das moradas ribeirinhas.
Esta Aquidauana feminina está preparada e determinada para assumir seu protagonismo na edificação de um município capaz de dar bons exemplos de respeito e igualdade entre todas as pessoas.
O referido Projeto de Lei afronta disposições legais que podem esvaziá-lo e reduzi-lo moral, ética e institucionalmente, restando como mera peça de autopromoção para o seu autor. A pressa em confeccionar leis em função de objetivos políticos pessoais cobra sempre um alto preço, a ser pago justamente pelas mulheres de um município localizado num estado que ostenta as taxas mais elevadas de feminicídio do Brasil e a mais alta neste período marcado pela pandemia.
Cumpre salientar: a criação do aplicativo "Botão do Pânico", que o presidente da Câmara, vereador Wezer Luccarelli, define como peça central de seu projeto, já foi adotado em vários municípios e estados do Brasil, mas não neste molde abstrato e superficial proposto para Aquidauana. As experiências exitosas implantadas já comprovaram que o aplicativo, por si só, pouco ou nada acrescentará aos objetivos de afirmação humanista de gênero, perdendo totalmente o sentido, sem a atuação transversal dos vários órgãos - administração pública, por suas secretarias pertinentes, Poder Judiciário, Ministério Público, Polícia Civil e Polícia Militar -, haja vista que acioná-lo visa a garantir a incolumidade das vítimas de violência doméstica que já tenham obtido medidas protetivas prescritas pela Lei Maria da Penha.
Ademais, o nobre dirigente legislativo deveria saber que a instituição do aplicativo implicará automaticamente criação de despesas para a gestão pública, o que é vedado pela Constituição e está previsto também no artigo 152, parágrafo 2°, alínea "c", do Regimento Interno da Câmara Municipal, que confere atribuição exclusiva ao gestor do executivo municipal este tipo de proposta legislativa.
A tramitação do PL sem as devidas etapas pré-estabelecidas no regimento interno da Câmara Municipal atropelou outras disposições. Além das flagrantes ilegitimidades, não se encaixa no regime de urgência especial e nem evita grave prejuízo ou perda de sua oportunidade, haja vista que institui um programa de combate ao feminicídio, uma demanda premente, mas que por sua natureza programática prevê intervenções a serem realizadas ao longo tempo e tratadas em conjunto. Não tem foco em situação específica mais clamorosa, ou seja, não se enquadra em nenhum dos regimes previstos pelos artigos 143 a 148, do Regimento Interno da Casa, sendo o caso da tramitação ordinária (artigo 149).
É consagrado que a obediência aos ritos legislativos garante maior eficácia às leis e, ainda, dá a melhor condição para que sejam cumpridas. Assim, ouvir a sociedade - nesse caso em especial as mulheres -, seus movimentos e entidades representativas, bem como os órgãos e entes públicos necessários à execução de um programa dessa magnitude, apenas tende a fortalecer e garantir a legitimidade do projeto de lei.
Ainda que o andamento da matéria tenha maior celeridade, a dispensa das normas regimentais da tramitação ordinária não exclui a exigência de parecer, conforme determinam os artigos 144 e seguintes, do Regimento Interno da Câmara Municipal. As comissões permanentes de Justiça, Redação e Eficácia Legislativa e de Cidadania, Direitos Humanos, Direitos do Consumidor e dos Direitos da Mulher deviam ter exarado seus pareceres.
Outro ponto gravemente comprometedor de origem e execução nesse projeto foi a falta de realização da audiência pública, prevista no artigo 69, inciso II, do Regimento Interno da Casa, quando a matéria trata de interesse público relevante.
Cabe indagar: os excelentíssimos representantes da população não consideram relevantes a presença, a participação e as causas legítimas das mulheres de Aquidauana, especialmente as vítimas e potenciais vítimas do feminicídio? Não entendem este quadro como de interesse público relevante? Além disso, a audiência pública no processo legislativo está inscrita na Constituição Federal, dispositivo que governa a feitura de leis em todos os demais entes federados, podendo ser questionada a lei aprovada sem sua observância.
Quanto ao fato da pandemia do coronavírus se apresentar como um impeditivo de ordem sanitária, lembramos que existem várias alternativas, e que temas relevantes são debatidos diariamente em diversas instituições do país através das plataformas on-lines.
Ressaltamos que a importância de mérito não torna legítimos os processos de elaboração, aprovação e edição do PL, por sua condução apressada, restrita ao ambiente privado dos interesses de um legislador. Todos os parlamentares da Câmara de Aquidauana são do sexo masculino. Num universo representativo de gênero único, decidir o que é importante para as mulheres sem ao menos ouvi-las já tipifica um ato de agressão e de desrespeito, destoante do que está previsto na própria legislação e contrário ao que preconiza o autor do PL.
O COMPORTAMENTO do presidente da Câmara ao apresentar o projeto só corrobora nossa indignação pois, durante a apreciação de uma proposta cujo objetivo é assegurar que o público feminino exerça sua cidadania e realize-se como sujeito de direitos, põe-se a disparar ataques gratuitos e faz referências depreciativas contra uma de nós - mulher que não compartilha de suas preferências políticas e ideológicas, revelando, contraditoriamente ao que se propõe a combater, uma atitude patriarcal - de superioridade do homem em relação às mulheres. A este comportamento manifestamos profunda repugnância. Nada se muda se cultivamos os mesmos hábitos!