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Crônicas

Ode ao Velho Cine Glória

*Paulo Corrêa de Oliveira
 
Finalmente, após vários anos de abandono, vendeu-se o prédio do antigo cinema de Aquidauana: o Cine Glória. E o progresso, inabalável no seu determinismo, começa a demoli-lo.
 
O Cine Glória representou para tantos aquidauanenses a materialização de sonhos de uma época.
 
Sonho, em primeiro lugar, do seu idealizador: Décio Corrêa de Oliveira. Um jovem obstinado que conseguiu de uma tia a doação do terreno, e de outra, o financiamento para a sua construção. Em 18 de janeiro de 1941, inaugurava-se o majestoso prédio na pequena cidade esquecida do interior do imenso Estado de Mato Grosso. E, com ele, a fábrica de sonhos de muitas gerações.
 
Quantas crianças alvoroçadas não acompanharam as matinês de domingo. Era uma festa. Na calçada fazia-se a transação dos gibis (revistas em quadrinho) lidos e trocados por outros não lidos. Por ocasião das balas premiadas com figurinhas, as mesmas eram trocadas nesses instantes que antecediam ao filme. Quando as luzes se apagavam, ninguém conseguia segurar o grito uníssono e ensurdecedor da platéia, aguardando o filme, geralmente um faroeste e posteriormente seguido por um seriado, como o de Flash Gordon.
 
A matinê de domingo era também o local para o encontro dos primeiros amores juvenis.
 
A noite de domingo era sobre tudo especial. Havia duas sessões: uma às 19 horas e outra às 21 horas. O movimento de pedestres na rua era tão intenso que eram colocados cavaletes para impedir o trânsito de veículos naquele horário. Acreditem!... Eu vi... 
 
Lembro ainda hoje, com incrível nitidez e saudade, o eco da sirene que ecoava na enorme solidão da noite anunciando, com seus três toques, o próximo inicio da sessão.
 
O Cine Glória era uma ilha iluminada na escuridão da cidade, quando aconteciam os freqüentes cortes e racionamentos de energia da época. A energia gerada por seus próprios motores dava constância à sua programação.
 
O Cine Glória abrigou em seus palcos também espetáculos teatrais, com atores como Procópio Ferreira, pai da atriz que ainda brilha no cenário artístico nacional: Bibi Ferreira. E também badalados cantores, como João Dias.
 
O entorno do cinema também contribuía para o cenário do sonho. Na rua, havia sempre um carrinho de pipoca estacionado. Pegado ao cinema, o Bar do Zizi convidava para um café antes e depois do filme. Mais um pouco, na esquina, a pracinha com seus altos coqueiros e alguns bancos espalhados, abrigava os jovens para um passeio que antecipava a ida ao cinema. Andavam em círculo, num certo sentido os garotos, e no outro, as garotas. Tudo isso, ao som do alto-falante do Elídio Teles de Oliveira que anunciava os anúncios comerciais: ?Licor de Piqui Mandeta?, ?Para mim, para ti, guaraná Tupi?, ?Casas pernambucanas, sempre os melhores preços?. Ou, ouvindo os recados musicais: ?a moça de vestido rosa oferece para o rapaz de camisa azul?.
 
Em volta da pracinha, os bares: Rádio Bar, Bar Bom Jardim e também o Café Caipira que sustentavam o movimento da chamada Praça Estevão Alves Corrêa.
 
Neste reviver de sonhos, não podemos deixar de relacionar figuras unidas a essa magia nostálgica do Cine Glória:
 
Elias, o porteiro da raça terena, que realizava seu sonho de incorporar uma pessoa importantíssima na cidade, pois, por sua mão passavam todas as pessoas e autoridades locais. Mais importante que ser pedreiro matutino, sua função noturna de porteiro do Cine Glória lhe dava o status da glória.
 
O médico humanista e carismático, Dr. Estácio Muniz, que encontrava nos filmes o sonho de uma arte que satisfazia sua vasta cultura E lhe fazia esquecer as agruras dos parcos recursos técnicos da saúde local.
 
Ele tinha uma cadeira cativa no cinema. Seu nome figurava escrito nessa cadeira que sistematicamente utilizava. Era voz corrente que a sessão não começava sem sua presença. 
 
Rubens Corrêa, o ator de teatro que se revelaria mais tarde um dos maiores nomes da constelação artística brasileira, foi um dos maiores sonhadores do Cine Glória. Em várias entrevistas Rubens confessou que o Cine Glória o excitava profundamente. Os filmes despertavam sua curiosidade sobre outros mundos, outros costumes. Derramavam sobre ele uma torrente caudalosa da paixão humana que despencava sobre seus sentidos, atordoados e surpresos por aquela gama de conflitos, deslumbramentos, emoções, descobertas, intrigas e enigmas.
 
O filme acabou. A luz acendeu. O sonho foi interrompido.
 
As pessoas, em seu espírito, continuam dando volta sem parar na pracinha que não existe mais. Talvez ao som do antigo sucesso de Orlando Silva:
 
Neste mundo eu choro a dor
 
De uma paixão sem fim...
 
Ninguém conhece a razão
 
Porque eu choro neste mundo assim.
 
Adeus Rádio Bar, Bar Bom Jardim, Café Caipira, Bar do Zizi.
 
Adeus Décio, adeus Elias, adeus doutor Muniz, adeus Rubens Corrêa.
 
Adeus Cine Glória e sua sirene chorosa. Adeus para sempre!

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